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ARTIGOS/OPINIÃO

Crise não legitima atuação do Ministério Público em desarmonia com os demais Poderes

O Ministério Público do Estado de Mato Grosso conta com excelente quadro funcional. Membros e servidores capacitados, muitos com vivência acadêmica louvável e de projeção nacional. Não se pretende, portanto, personalizar ou pessoalizar críticas sob o viés técnico-acadêmico, mas alertar para o perigo pelo qual muitas vezes a atuação institucional se envereda, de modo a esfacelar as demais funções orgânicas institucionais contempladas na Constituição da República.

Não obstante se tratar de instituição permanente - essencial ao funcionamento da democracia e do Estado de Direito, prevista no art. 103 da Constituição do Estado de Mato Grosso (CE-MT) -, esta não pode, como infelizmente vem agindo, substituir-se aos demais poderes e órgãos autônomos.

Os Poderes da República são três: Executivo, Legislativo e Judiciário. Exercem o papel que lhes cabe, nos conformes de sua competência e capacidade. O Ministério Público há de agir em estrita observância aos princípios basilares da separação e harmonia dos poderes: não pode substituir o Executivo ou o Legislativo, ditando política de gestão ou de legiferação. O Ministério Público não gere, nem legisla. Nem pode mandar que outros giram e legislem nos conformes por ele ditados. O Executivo e o Legislativo não se subordinam ao Ministério Público.

Em que pese a importância do MPMT, bem como suas atribuições de proteção do interesse público-social, não se pode confundi-las com uma ampla e indistinta liberalidade de atuação, principalmente quando se ultrapassam os limites legais, atingindo competências específicas de outros órgãos.

 

Por isso nosso imenso estranhamento, ao acordarmos, no dia de hoje – 1º de abril de 2021 – e recebermos notícia da propositura de uma ação civil pública (1011319-07.2021.8.11.0041), intentada por membro do MPMT, visando, em verdade, sujeitar o Executivo a uma política de saúde traçada pelo próprio Ministério Público.

Para o leitor curioso, indicamos que a abra a lei ordinária nacional n. 7.347/85, norma que rege a ação civil pública (ACP). O seu art. 1o, inciso IV, aparenta conferir aos legitimados para propositura de ACP (para os mais curiosos: olhar art. 5o) amplíssima discricionariedade, beirando à arbitrariedade, para propor ação visando proteger “a qualquer interesse difuso ou coletivo”.

Está errada a lei?

Não, não está. Nas ciências jurídicas, todavia, uma das primeiras dádivas interpretativas que recebemos é a imprescindibilidade de interpretar de acordo com a Constituição. Não existe interpretação válida fora da moldura constitucional. Uma lei que confere poderes aparentemente absolutos ao Ministério Público não o legitima para agir em desconformidade à separação dos poderes, em substituição ao Executivo ou ao Legislativo.

Não cabe ao MPMT ditar política de gestão. Gerir, inclusive gerir crise, é atribuição-mor do Poder Executivo: do Presidente da República, dos Governadores, e dos Prefeitos. Estes hão de gerir em harmonia com as leis que passam pelo crivo do Poder Legislativo, submetendo-se, ainda, à fiscalização do Legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas quanto à fiscalização financeira e operacional.

As atribuições que são conferidas ao MPMT, sejam pela CE-MT ou por legislação federal ou estadual, hão de ser lidas à luz dos demais dispositivos constitucionais. O Ministério Público não pode ditar política de saúde ao Poder Executivo, nem se substituir ao Poder Legislativo no seu papel de fiscalizar os atos legítimos daquele.

Bem verdade que a intenção do pedido feito na referida ação civil pública é até louvável, conquanto estranheza e perplexidade em algumas novidades. Porém, rompe com o âmbito de sua competência. Não cabe ao MPMT ordenar o que o Poder Executivo deva fazer, no período em que deva fazer e quais matérias abordar no decreto. Imagine se o contrário também fosse garantido: poderia o chefe do Poder Executivo promover, privativamente, a ação penal pública, por mais que a intenção seja boa? A resposta é negativa, pois a própria Constituição da República estabelece as funções de cada um dos Poderes.

Não se pretende, aqui, dizer que é válido ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo se omitirem. Não é. A omissão pode ser fonte de inconstitucionalidade, assim como a ação. O poder de ditar política de saúde é, num linguajar mais técnico e preciso, um poder-dever. Todavia, ‘omissão’ não significa vedação à discricionariedade que os poderes políticos detêm no cumprimento de seus deveres constitucionais.

Nos dizeres do catedrático Celso Antônio Bandeira de Mello, a discricionariedade:

[...] é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.

Observa-se que o conceito traz que a discricionariedade deve adotar a solução mais adequada a satisfazer a finalidade legal. No atual estágio democrático de direito, esse instituto é limitado pela lei em sentido amplo, assumindo uma posição jurídica de grande relevância para a tomada de decisão.

Ademais, essa escolha feita pelo gestor público ao analisar um caso concreto, é realizada com critérios de oportunidade, conveniência, justiça, igualdade, necessidade, urgência. E, uma vez que esses critérios não são definidos pelo legislador, cabe ao gestor fazer essa aprofundada investigação de mérito.

Não pode ser considerado um poder ilimitado que o agente público possua: essa liberdade de atuação é limitada pelo próprio direito. Isso não quer dizer que um órgão tipicamente jurisdicional possa exigir de um órgão executivo a adoção de uma determinada medida pública.

Nem mesmo a atual situação de calamidade sanitária pode ser utilizada como justificativa. O chefe do Poder Executivo possui as informações e meios pertinentes para analisar e decidir qual medida adotar. Para isso conta com uma equipe técnica para dar suporte na sua tomada de decisão, conciliando os instrumentos que dispõe com o melhor resultado exigido.

Não se pode aceitar que um órgão tipicamente jurídico utilize de suas prerrogativas para buscar no Poder Judiciário uma tentativa de implementação de políticas de gestão pública. Nada mais estaria usando do Direito para romper com o próprio Direito – ignorando o preceito fundamental da separação harmônica e independente dos Poderes.

Por diversos momentos, as construções doutrinárias vinham reduzindo a margem de apreciação, e escolha, do administrador quanto aos atos discricionários. Para romper com esse ciclo, autores como o professor Gustavo Binenbojm defendem a chamada “Teoria do Enfoque Jurídico-Funcional”, a qual parte da ideia de que o princípio da separação dos poderes deve receber uma releitura, de modo que:

“ao invés de uma predefinição estática (...) impõe-se o estabelecimento de critérios de uma dinâmica distributiva “funcionalmente adequada” de tarefas e responsabilidades entre Administração e Judiciário, que leve em conta não apenas a programação normativa do ato a ser praticado (estrutura dos enunciados normativos constitucionais, legais ou regulamentares incidentes ao caso), como também a “específica idoneidade (de cada um dos Poderes) em virtude de sua estrutura orgânica, legitimação democrática, meios e procedimentos de atuação, preparação técnica etc.”

Essa teoria sustenta que, para situações como as mais complexas envolvendo discricionariedade administrativa, os critérios tradicionais de interpretação jurídica não oferecem soluções satisfatórias. A extensão ou a densidade do controle não se pauta por uma lógica puramente normativa, devendo atentar para os procedimentos adotados pela Administração.

Dessa forma, o controle tende a ser menos intenso em áreas técnicas, que lidam com matéria de alta complexidade, mormente: a) quando o ato for precedido de um procedimento amplo, com participação dos administrados na decisão; e, b) quando o ato possui em si uma relevância política, ao ponto de demandar a atuação do agente legitimado democraticamente.

Havendo escolha juridicamente legítima do Poder Executivo, há um só modo de se substituí-la, em caso de discordância: por intermédio do Poder Legislativo.

É impossível que a lei preveja todas as situações que possam existir. Ninguém imaginaria viver num momento de pandemia, muito menos num colapso do sistema de saúde do país. O Direito é uma ciência que acompanha a sociedade e os fatos sociais inerentes, que analisa a realidade e as questões que surgem ao passar do tempo para evitar, assim, que injustiças e arbitrariedades ocorram.

Por fim, caminhou muito bem o magistrado competente para julgar a ACP acima citada, ao ouvir os poderes acionados, antes de tomar qualquer decisão açodada, resgatando a verdadeira etimologia do verbo “dialogar”, prezando por uma simples forma de circular sentidos e significados, ou seja, proporcionando sentido à palavra “liga” ao invés de “separar”, “reunir” ao invés de “dividir” ainda mais o que já está insustentável.

Muito bem percorreu outro magistrado deste Estado de Mato Grosso que, recentemente, estampou manchetes nacionais, ao indeferir um pedido de acesso a um leito de UTI, pedindo, humildemente, escusas e se solidarizando com os profissionais da saúde, ciente de que não possuía “poderes divinos” de mudar uma realidade fática, porquanto qualquer decisão contrária da que emanou, seria de impossível utilidade/efetividade.

Da mesma forma ocorrerá com a atendimento dos pedidos da ACP acima mencionada. Terá o Estado (em seu sentido amplo) capacidade de frear o anseio popular que tem tomado as ruas ao pleitear condições mínimas de sobrevivência para quem precisa laborar, traduzido por intermédio das decisão até aqui tomadas pelos seus representantes eleitos democraticamente? Pergunta-se em frase mais resumida: terá o Estados meios coercitivos para efetivar “possível” decisão que atendesse “glamoroso” rol de pedidos realizados pelo MPMT?

Chegou a hora da população, a custo de vidas próximas (pois todos achávamos que o mal não nos atingiria, não bateria em nossas portas), refletir mais sobre suas atitudes, por vontade própria, não por imposição de órgãos não legitimados pela Constituição da República!

O que se espera dos poderes públicos é a união para a confirmação e a persecução da ordem democrática e do interesse público. Como já bem sacramentou o saudoso Machado de Assis: “Não é só a monarquia / Que tem plantas reverendas / Vento da democracia / Também faz brotar comendas”.